Ford no Brasil: de gigante a nanica? Não necessariamente…
A Ford faz parte do imaginário do brasileiro: Fordinho, Fordlândia, Mustang, Escort, Autolatina, Del Rey, Galaxie/LTD/Landau, Fórmula Ford, carros inovadores, outros nem tanto, caminhões, picapes…. No último século, a Ford foi protagonista na história do automóvel no Brasil, desde que começou a montar o Modelo T por aqui, em 1919. O grande salto aconteceu em 1967, quando adquiriu a Willys e herdou o projeto do Renault 12, que se transformou no Ford Corcel. Com a Willys veio a histórica fábrica de São Bernardo do Campo (SP), fechada em 2019, como prenúncio do que estava para acontecer.
Agora a marca avisou que encerrou a fabricação imediata da produção de automóveis (Ka/Ka Sedan e EcoSport) em Camaçari (BA) e motores em Taubaté (SP); o jipinho Troller, de Horizonte (CE), deve durar até o final do ano.
Na verdade, a compra da Troller foi uma enorme artimanha fiscal da marca norte-americana, que não precisava de uma fábrica de jipinhos de fibra de vidro, e sim estava comprando uma fábrica repleta de incentivos e transferindo os benefícios fiscais dos poucos Troller cearenses para milhares e milhares de carros produzidos em Camaçari, na Bahia, outro Estado do Nordeste coberto pela legislação fiscal para a região.
Na prática, foi uma forma de não mandar para os cofres do governo centenas de milhões de reais. Tudo dentro da lei, apesar de que nem tudo que é legal é moral. Os Troller sequer ostentam o emblema oval da Ford…
O mundo girou, o Brasil andou para um lado e a Ford para outro. Após mais de 100 anos de plena atividade industrial, a marca de torna-se apenas importadora no Brasil. De acordo com a empresa, isso foi necessário para estancar prejuízos e custos. O Ka, por exemplo, era considerado um carro deficitário, mesmo perdendo componentes interessantes, como o eixo contra-rotativo do motor Dragon 1.5 de três cilindros, a central multimídia mais sofisticada e detalhes do acabamento.
O EcoSport, por sua vez, colocou os SUVs pequenos no gosto dos brasileiros e salvou a marca da crise que enfrentou no Brasil no final dos anos 1990 –quando a Ford, depois do fim da Autolatina (1996), quase saiu do Brasil pela segunda vez; a primeira foi nos anos 1980, antes da joint venture. O jipinho se tornou referência e foi um enorme sucesso, mas a nova geração encareceu o produto e não foi suficiente para enfrentar a concorrência.
O fim da história da Ford no Brasil como fabricante foi só o epílogo de uma sequência de movimentos errados, sinalizado há menos de dois anos. As chorosas justificativas para o fechamento da fábrica de São Bernardo foram as mesmas de agora, mas com o argumento extra da pandemia da Covid-19. Ser apenas a quinta marca mais vendida em 2020, com 7,14% do mercado, foi a pá de cal. Segundo o governo federal, a Ford pediu mais subsídios (dinheiro) e não foi atendida.
O desafio da marca agora é ainda mais humilde em termos de números: vender um punhado de carros importados a preços competitivos, apesar dólar muito alto; essa situação beneficia quem exporta, e não quem importa! Por isso, trabalhar com carros em faixas de preço ainda mais altas que os atuais vai ser um bom exercício de criatividade. No mercado americano a Ford abandonou os carros de passeios, focalizando em picapes e SUVs; os poucos carros de passeio estõão concentrado nos mercados europeu e chinês, e não devem dar as caras por aqui.
Com o desaparecimento do EcoSport e Ka, o veículo mais barato da marca no Brasil passa a ser a Ranger, importada da Argentina, com preços começando em R$ 156 mil, o triplo do que era pedido no Ka de entrada (R$ 51.990).
Em dezembro, a Ford deixou pistas de que a situação não era boa, pois os lançamentos anunciados para este ano de 2021 antecipavam novidades apenas em termos de carros importados, incluindo na lista uma nova versão da picape Ranger, a visualmente escurecida Black. Uma nova Ranger está prevista para 2023 ou 2024. Há em andamento uma parceria Ford-VW para o desenvolvimento conjunto dessa picape e de outros modelos comerciais.
Uma coisa é certa, a rede de concessionários (mais de 300) vai praticamente desaparecer, pois importados caros não só sustentam o sistema, como exigem outro tipo de atendimento a um público mais exigente. Por exemplo. outro dos importados anunciados foi o novíssimo Bronco Sport, que deve começar a ser vendido aqui ainda no primeiro trimestre. Cerca de 30 unidades já chegaram. Quem estava acostumado a vender Ka, não sabe vender Bronco.
O jipe vem do México, com motor 2.0 turbo de 245 cv, e vai brigar com outro importado, o VW Tiguan R-Line, com preço podendo chegar a R$ 235 mil, mais caro que o chinês Territory.
Além do Bronco Sport, a Ford promete trazer o Ford Bronco, esse sim um jipe com chassi, duas ou quatro portas, motores 2.3 turbo com 270 cv e 42,8 mkgfm ou 2.7V6 turbo de 310 cv e 55,2 mkgf. Seu único concorrente por aqui é o Jeep Wrangler, e isso significa preços estratosféricos, na casa dos R$ 400.000. O lançamento está previsto para o final do ano.
Outra possibilidade da Ford importadora é uma picape montada na mesma plataforma Bronco Sport, a Maverick (nada a ver com o homônimo vendido aqui nos anos 1970) que entra na briga na mesma categoria da Fiat Toro. Os motores deverão ser os mesmos do Bronco Sport, mais um 1.5 três cilindros turbo de 185 cv previsto. Produzida no México, a Maverick ainda não foi seqer apresentada, mas está prometida para o mercado brasileiro; há boatos de que pode ser montada também na Argentina.
No segmento eletrificado, antes de estrear seus carros elétricos no Brasil, a marca vai voltar a trazer um híbrido. O Fusion saiu de linha, e por isso a Ford vai apostar na SUV Escape híbrido. Uma curiosidade: quem vai garantiar a manutenção e peças dos Fusion híbridos que rodam por aqui?
O Ford Escape tem motor Duratec 2.5 16V a gasolina de 165 cv e 21,4 mkgf de torque, e um motor elétrico que permite a potência combinada de 200 cv. A transmissão é CVT e são produzidas versões com tração dianteira e integral. A bateria de 14,4 kWh é suficiente para percorrer 50 km sem consumir uma gota de gasolina.
Sempre na briga de nichos de mercado, outro importado que a Ford anunciou em dezembro último foi o Mustang Mach 1, cuja semelhança com o clássico Mach 1 de 1969 se resume ao nome. Traz para-choques exclusivos, grade com dois circulos que lembram os faróis auxiliares do modelo 1969,faixas decorativas e aerofólio. As rodas são de aro 19, que tentam lembrar o desenho das Magnum 500 da época. Tem motor 5.0V8 na versão mais potente já fabricada: 486 cv e 58 mkgfm de torque .
Para o próximo ano a Ford previa o lançamento do Mustang Mach-E, SUV elétrico com estilo que lembra o cupê esportivo. Viria do México, mas não existem maiores informações.
Já o furgão Transit, que chegou a ser vendido no Brasil há alguns anos trazido da Turquia, agora será importada do Uruguai, ainda neste ano de 2021. É produzida no país vizinho pela Nordex, que também faz a montagem de carros para outras marcas.
A picape F-150 -líder de vendas nos Estados Unidos e um dos “carros” mais vendidos do planeta- é desejada e era solicitada pelos concessionários, mas nada indica que será importada, nem na versão esportiva Raptor. Seria uma boa concorrente para as também importadas RAM.
Observando o que restou do portfólio da Ford, descobrimos que o SUV Edge ainda é comercializado aqui, por pouco mais de R$ 350 mil, com seu motor 2.7V6 turbo de 335 cv. Não há garantia de que continue sendo comercializado aqui. Também é imprevisível o futuro do excelente SUV Territory, chinês, recém chegado e bastante recheado de equipamentos, mas que custa R$ 180 mil. É preciso observar se suas vendas irão progredir. Ou se o nocaute em termos de imagem e de marketing que a marca vai sofrer de agora em diante mudará o destino do Territory no mercado brasileiro.
Enfim, uma grande pena. A perda de uma empresa desse porte terá reflexos por muito tempo: mercado, fornecedores, concessionários, lojas, oficinas, funcionários, famílias… todos sentirão. Montadora de automóveis, como qualquer indústria, visa lucros. E com a Ford não é diferente. Pesou a absoluta falta de perspectiva que o Brasil oferece em termos econômicos, uma política objetiva para a próxima etapa da indústria automotiva (eletrificação, 5G, compartilhamento etc), a pandemia, queda de 40% nas vendas no ultimo ano e prejuízos, muitos prejuízos.
A marca em 2018 sinalizou que amargava prejuízo de cerca de U$ 1 milhão por dia no Brasil, acumulando perda de U$ 4,2 bilhões na América do Sul entre 2012 e 2018. Assim, não há o que fazer a não ser lamentar 5.000 empregos perdidos, o que é uma tragédia. Uma marca vai embora, outra pode chegar, desde que o Brasil repense sua economia e futuro. Anote: outras duas marcas estão de malas prontas para ir embora do Brasil.