O ASSASSINATO PREMEDITADO NAS ESTRADAS
“Acidentes com caminhões são uma triste rotina nas estradas do país. Muitos especialistas da área afirmam que isto é decorrência direta do desrespeito às normas dos condutores dos veículos de carga. Por óbvio os acidentes decorrem diretamente disto, mas existe um cenário que propicia, ou melhor, impõe o desrespeito às leis que objetivam a segurança do tráfego de caminhões nas estradas. Trata-se da forma negligente de regulamentação do nosso sistema logístico de transportes.
O desconhecimento geral sobre o funcionamento do nosso sistema logístico de transportes contribui para a pouca sensibilidade da população de forma geral, em relação a esta importante causa de acidentes com mortes nas estradas. Isto corrobora de forma decisiva para que os responsáveis pelo planejamento, execução e controle do sistema logístico de transportes (SLT), possam executar as suas ações sem que sejam responsabilizados pelas consequências. O sistema funciona como uma cadeia de fatos que disparam diversas ações. O embarcador (indústria, comércio, etc.), contrata o serviço de um operador (transportadora, operadora logística, operadora de transporte multimodal e 4PL), para o transporte da carga, que utiliza a rede (vias e terminais), planejados, ofertados e regulados pelo governo (municipal, estadual e federal).
O sistema funciona de forma imperfeita na medida em que a oferta de serviços de transporte encontra-se estressada, principalmente por duas razões: a primeira é a falta de infralogística e a segunda é por falta de competição entre operadores multimodais. Enquanto que a falta de infralogística é percebida por todos os usuários das estradas do país, a falta de competição entre os operadores é pouco compreendida na sua origem, mas muito conhecida nos seus efeitos. A falta de competição entre os operadores dos demais modais é decorrência da forma como as vias e terminais foram concedidos à iniciativa privada. A malha ferroviária foi privatizada somente para uma empresa em cada região, o mesmo aconteceu com os terminais portuários e para piorar a situação existem somente duas empresas que executam o transporte de carga geral em containers na costa do país (navegação de cabotagem). Tal conjuntura propiciou a formação de monopólios no caso das ferrovias e oligopólios nos demais casos, motivando uma forma de funcionamento nociva ao SLT e contrário aos objetivos da logística (diminuir custos e melhorar os serviços). De todos os males que o monopólio e oligopólio trazem para o SLT o pior é a falta de competição, uma vez que esta origina a acomodação em posição de conforto, eliminando a natural expansão de oferta (com níveis de serviço melhores), e tarifas mais baixas.
Na ponta desta cadeia de fatos estão as empresas de transporte de cargas do modal rodoviário, que possuem as menores rentabilidades dentre todos os setores econômicos do país. É delas a responsabilidade de arcar com uma oferta de transporte que possibilite o escoamento dos produtos através das estradas. A recente lei de restrição de jornada de trabalho dos condutores de veículos de transporte diminui consideravelmente a capacidade de deslocamento de carga, que supostamente deveria ser absorvida pelos operadores dos demais modais, principalmente hidroviário e ferroviário. Mas isto se torna impraticável na medida em que inexiste infralogística disponível para tal, tampouco condições de funcionamento. Como decorrência deste cenário, não resta alternativa para o governo a não ser a prorrogação de vigor da lei de restrição de jornada dos caminhoneiros.
Para quem conhece o funcionamento do SLT, existe a clara percepção de que o panorama de caos nas estradas está emoldurado. Os caminhoneiros não estão sujeitos às leis de descanso e por conta disso causam sérias consequências com o aumento de acidentes. O contexto do resultado catastrófico poderia ser melhor evidenciado na medida em que houvesse dados integrados sobre os acidentes nas estradas estaduais, municipais e federais. Melhor ainda se estas informações fossem de domínio público, só que isto não interessa ao governo, embarcadores e operadores, uma vez que mudaria o status de necessidade e tiraria todos da posição de acomodação. As informações poderiam ser captadas na sua essência e tratadas como uma desgraça nacional, assim como são tratados os acidentes aéreos, por exemplo. É inconcebível que haja tantas mortes nas estradas sem que se tenha uma profunda investigação, tal qual ocorre com os acidentes aéreos. Além disso, deveria haver também a obrigatoriedade de se ter caixas pretas nos caminhões, nas quais os dados sobre os acidentes fossem gravados e recuperados por ocasião das investigações (uma tecnologia existente no Brasil há mais de 20 anos).
A não adoção de medidas extremas para investigar e evitar as mortes nas estradas não passa de cumplicidade no verdadeiro assassinato premeditado para que a logística do país continue funcionando”.
Mauro Roberto Schlüter é professor de logística da Universidade Presbiteriana Mackenzie – Campus Campinas e diretor do IPELOG