A história do Alfa Romeo Canguro 1964: do ferro-velho à glória
Poucos concept cars foram tão inovadores e tiveram uma história tão cheia de reviravoltas como o Alfa Romeo Canguro, que completou 60 anos em 2024. Montado no chassi de um Alfa Romeo Giulia TZ e desenhado por Giorgetto Giugiaro para a Bertone, surpreendeu a todos e chamou atenção no Salão de Paris de 1964. No entanto, os seus diversos avanços técnicos fizeram com que a sua produção fosse descartada, e um acidente no circuito de Monza o colocou à beira do sucateamento, de onde foi salvo por apaixonados por carros clássicos. Em 2005, há 20 anos, o Museu Alfa Romeo ajudou no seu restauro, bancado por um colecionador japonês, que o apresentou no “Villa d’Este Concours d’Elegance”, onde foi premiado.
por Ricardo Caruso
Com os sucessos do Alfa Romeo Giulia TZ nas pistas, surgiu a ideia de criar um modelo de série que trouxesse as suas virtudes dinâmicas e desempenho para as ruas. No início da década de 1960, os chefões da Alfa Romeo enviaram um chassi tubular do TZ para a Bertone e outro para a Pininfarina, e encomendaram a criação de protótipos para desenvolver este novo automóvel. O Alfa Romeo Canguro foi a proposta da Bertone.
Passaram-se 60 anos desde a apresentação deste conceito na 51ª edição do Salão de Paris, onde recebeu aplausos praticamente unânimes da imprensa especializada e do público. A sua carroceria de fibra de vidro, com desenho assinado por Giorgetto Giugiaro -que já havia mostrado o seu talento no Alfa Romeo Giulia Sprint em 1963- surpreendeu pelas linhas suaves e sinuosas, com pára-brisas e vidros harmoniosamente integrados, num estilo dinâmico e vanguardista. Para suavizar o fluxo de ar, este carro tinha o pára-brisas colado à carroceria, o primeiro na indústria automobilística.
Apenas um exemplar foi construído, com número de chassi “10511 AR 750101”, ou seja, era o chassi nº 101 dos TZ. Um dos trunfos do TZ era o seu chassi extremamente baixo, que permitia uma área frontal reduzida, e fazendo uso disso, Giugiaro construiu a carroceria em fibra de vidro, bastante aerodinâmica, ainda mais baixa que a do TZ.
Precisamente, a superfície de vidros era uma das grandes novidades do Canguro: pela primeira vez, os diferentes vidros foram coladas à carroceria de um carro, como já citamos, algo mais do que o habitual nos veículos atuais, mas muito avançado para 1964. Ao desenho não faltaram detalhes, como a traseira aerodinâmica “Coda Tronca”, hoje presente no novo Alfa Romeo Junior, ou as saídas de ar interiores que assumiram a forma do mítico “quadrifoglio”. Sob o capô, o motor que equipava o Canguro era de 1570 cm3, de quatro cilindros em linha e duas válvulas por cilindro, perfazendo, mas com dois comandos de válvulas, montado longitudinalmente na frente e alimentado por dois carburadores Weber de corpo duplo. Tal como os Alfa Romeo daqueles anos, era um carro de tração traseira.
A suspensão era com triângulos sobrepostos na frente e na traseira. Tinha freios a disco nas quatro rodas, sendo os traseiros montados internos. O peso total era de 650 kg, e estava equipado com belíssimas rodas Campagnolo aro 13 feitas de magnésio forjado.
A partir do revolucionário chassi tubular do Alfa Romeo Giulia TZ, Bertone e Giugiaro desenvolveram um exercício de estilo avançado e atraente, sem pensar em possíveis limitações técnicas ou industriais. Mas foi exatamente este espírito inovador que impediu o Alfa Romeo Canguro de dar o passo decisivo rumo às ruas. Pouco depois de ter sido descartada a sua passagem para a produção em série, o Alfa Romeo Canguro sofreu um acidente violento durante uma sessão de filmagem publicitária para a Shell, na rápida Curva Parabólica de Monza, batendo na traseira de um outro protótipo da Bertone, o Chevrolet Testudo. A frente foi totalmente destruída. Com o coração partido, Bertone desistiu da sua reconstrução, diante das 15.000 horas de trabalho que seriam necessárias para devolvê-lo ao estado original. O destino deste conceito estava selado: o ferro-velho. Ao invés disso, ficou largado num canto qualquer da empresa.
A parte boa é que o legado do Alfa Romeo Canguro não caiu no esquecimento. Além das inovações no tratamento das superfícies de vidro, muitas características deste protótipo, como as saídas de ar horizontais nas extremidades dos para-lamas dianteiros, tornaram-se elemento característico dos desenhos da Bertone durante muitos anos. Além disso, diversos dos seus elementos estéticos e técnicos tornaram-se a base do Alfa Romeo Montreal, que foi apresentado como conceito na exposição mundial, realizada na cidade canadense de mesmo nome em 1967, e que acabou sendo produzido na década de 1970.
Quanto aos restos do Alfa Romeo Canguro, em 1971 um certo Gary Schmidt (que para uns era um jornalista alemão e para outros um americano caçador de relíquias automotivas, já falecido), comprou a sucata pelo valor simbólico de US$ 35. Tentou a sua reconstrução usando várias peças do Giulia, mas não conseguiu recuperar a dianteira do carro. Esse poderia ter sido o final da história do Canguro, mas felizmente não foi. Nos anos 1990, o colecionador japonês Shiro Kosaka comprou o automóvel semi-restaurado, tendo secretamente refeito o modelo com ajuda da própria Alfa Romeo por meio de seu museu. O carro viu a luz do dia pela segunda vez no prestigiado “Concours d’Elegance de Villa d’Este”, quando foi premiado, em 2005 e retornou glorioso ao seu esplendor.