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Porsche 924: quando a marca se reinventou com um câmbio “errado”…

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Porsche - The transaxle era

O Porsche 924 foi um modelo esportivo de duas portas, de origem Volkswagen, produzido pela marca alemã para substituir o 914 e lançado há 48 anos, em 1976. A novidade era a configuração de motor dianteiro e câmbio/diferencial/tração traseira utilizada no modelo, pouco usual na indústria e inédita nos carros da Porsche, que geralmente produzia modelos de motor central ou traseiro. Na época, esse carro foi uma revolução e mudou os rumos da Porsche, e hoje aparecem com destaque no mercado de colecionadores.

por Ricardo Caruso

Na verdade, os engenheiros da Porsche muitas vezes se parecem com crianças de quinta série, sempre prontos a contrariar. E não faltam exemplos dessa teimosia, que acaba se misturando com arroubos de criatividade. Até mesmo porque, quando se trata de inovar alguma coisa, é obrigatória uma certa dose de teimosia para desafiar o que já está estabelecido.

E foi assim que aconteceu em 1964, quando os engenheiros da marca instalaram o motor do Porsche 911 atrás do eixo traseiro, contrariando quase todas as convenções. E, não satisfeitos, foi também assim em 1974, 10 anos depois, quando repetiram a receita ao colocar a caixa de câmbio do Porsche 924 num local considerados errado, junto ao eixo traseiro, longe do motor instalado na dianteira.

Curiosamente há um ponto em que o Brasil se envolve nessa história. Durante sua gestão na Volkswagen do Brasil, o engenheiro Rudolf Leiding incentivou a criação de modelos esportivos desenvolvidos aqui. Os projetos resultaram no Karmann-Ghia TC e no Volkswagen SP2, apresentado na Feira da Alemanha em 1971, no Ibirapuera, em São Paulo. Em 1o. de outubro daquele ano, Leiding foi nomeado presidente do Grupo Volkswagen, e uma de suas primeiras atividades foi aprovar o projeto EA 425 para a joint-venture Volkswagen-Porsche. O EA 425 tinha a missão de substituir o Volkswagen Porsche 914.

Porsche 924/VW EA 425

No ano seguinte, a Volkswagen estava em dificuldades financeiras. Ao mesmo tempo em que investia em uma nova fábrica em Salzgitter, quatro de seus cinco novos modelos lançados naquela época (NSU Ro 80, Porsche 914, VW 411 e K70) encontravam-se com vendas muito abaixo do necessário para justificar sua fabricação. A crise do petróleo de 1973 e o alto custo de desenvolvimento de novos modelos (EA 425, Type 17, Type 53 e a nova versão do Audi 100) agravaram a crise dentro da empresa. No final de 1973 começaram a circular os primeiros boatos sobre o fim dos projetos conjuntos entre a Volkswagen e a Porsche. Após anunciar pesadas perdas financeiras em 1974, a liderança de Leiding passou a ser questionada, culminando com sua renuncia da presidência do Grupo Volkswagen em fevereiro de 1975. Em seu lugar assumiu Toni Schmücker.

O protótipo original do EA 425.

Uma das primeiras decisões de Schmücker ao assumir o Grupo Volkswagen foi cancelar os trabalhos do Volkswagen-Porsche e focalizar no Volkswagen Scirocco como o novo modelo esportivo da empresa. Após negociações, a Volkswagen resolveu vender o projeto EA 425 e seu protótipo concluído em 1974 para a Porsche, carro este que se transformou no 924 e foi um dos modelos mais bem vendidos da marca esportiva.

Uma das propostas para o VW EA 425.

Ele era um carro esportivo diferente. Motor na dianteira, caixa de câmbio na traseira e entre ambos muito espaço. Há quase 50 anos a Porsche surpreendeu o público e os jornalistas especializados com o moderno esportivo de quatro cilindros que adotava esse conceito de transaxle ou transeixo. Transeixo vem da palavra inglesa “transaxle”, composta da união dos termos daquela língua para transmissão e eixo. A força entre o motor e o eixo traseiro é transmitida por meio de um eixo de transmissão (cardã), que está localizado no interior de um tubo fixo. Para um esportivo este princípio -numa época na qual não existiam meios eletrônicos de transmissão- era bastante inovador. Ele garantia propriedades de dirigibilidade neutras e altamente seguras.

O slogan publicitário usado na época explicava a tendência: “o esportivo para a família”.

O Porsche 944 foi o carro esportivo mais vendido de sua época. Suas características incluíam os faróis escamoteáveis do seu antecessor, carroceria galvanizada e para-lamas mais largos. Tudo isso com a tradicional confiabilidade da marca.

Apenas um ano mais tarde a Porsche enriqueceu o mundo dos esportivos com o impressionante 928. De novo a mesma fórmula: motor na frente, caixa de câmbio atrás. Mas desta vez o esportivo futurista era movido por um motor V8. Segundo os anúncios daqueles tempos (1977), o conceito do 928 redefinia o ranking dos automóveis, reunindo três carros em um só: um esportivo de alto desempenho, um cupê de luxo com destaque para o conforto e um veículo de multiplas aplicações. Tudo junto e misturado.

Paralelo ao 911 com motor traseiro, havia agora no portfólio da Porsche dois esportivos transeixo, que com sua distribuição de peso otimizada e estilo avançado (para a época) se tornaram marcos da construção de carros esportivos. O 928 permaneceu em produção por quase duas décadas. O Porsche 924 foi seguido pelos 944 e 968. A era do transeixo só terminou em 1995, depois de fabricados quase 400.000 exemplares.

Uma pessoa que testemunhou toda era do transeixo na Porsche, desde a fase inicial até o fim, foi o desenhista, Harm Lagaaij. Ele acompanhou dois períodos importantes da fabricante de carros esportivos. Como jovem desenhista, ele criou as linhas do 924. Logo depois saiu da Porsche, mas retornou em 1989 como desenhista-chefe, quando então definiu os últimos modelos transeixo: o 968 e o 928 GTS, assim como os últimos 911 arrefecidos a ar. Ao mesmo tempo, sua equipe projetou o primeiro Boxster e o primeiro 911 “a água” inaugurando assim a era moderna da marca.

Lagaaij começou a trabalhar na Porsche em 1971. Em 1972 teve sua primeira grande chance: o então desenhista-chefe da Porsche, Anatole Lapine, passou para sua equipe a tarefa de elaborar projetos para atender a ordem de desenvolvimento do EA 425. O pedido era da Volkswagen. Lagaaij começou a reunir suas ideias em esboços e não podia imaginar que acabaria fornecendo a forma para um cupê que, alguns anos mais tarde, viria a ser o esportivo mais vendido no mundo.

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Econômico: para baixar custos, o 968 foi construído sobre a carroceria do 944. O desenho reforçou o vínculo familiar com outros modelos da  Porsche

“Eu era um jovem desenhista, tinha apenas 25 anos. E sim, estive intensivamente envolvido no projeto do 924. Ele surgiu como um projeto da VW. Havia três projetos finais criados fora da empresa. Um de Richard Soderberg, um de Dawson Sellar e o meu. Ainda que muito diferentes, uns dos outros, todos cumpriam os requisitos para o desenho do carro com transeixo”.

Todas as três versões foram apresentadas em Wolfsburg em modelos na escala 1/5. O carro de Lagaaij foi o escolhido. Enquanto ele forneceu o modelo estilístico para as proporções do 924, um outro desenhista contribuiu para um detalhe marcante. “A diretoria da Volkswagen sinalizou que tinha gostado muito da grande tampa traseira, de vidro, do modelo de Richard Soderberg. E assim meu projeto foi equipado com a tal cúpula de vidro”. O espaço interno do 924 e do 928 era de responsabilidade de Hans Braun, desenhista de interiores.

Porsche 928: capô, portas e para-lamas perderam peso e foram fabricados de alumínio. Em 1977 ele foi apresentado no Salão de Genebra como o “novo grande carro esportivo da Porsche”.

Poderíamos dizer que o resto é história. Mas não é bem assim. O que se sabe é que em fins de 1974, em função da crise do petróleo que dominava nessa época, a Volkswagen parou o projeto EA 425, naquela altura já em fase de pré-produção e completamente pronto. Da mesma forma está documentado o fato de que a Porsche, em seguida, adquiriu todos os direitos de produção em série do esportivo e o colocou no mercado no início de 1976.

Menos conhecidas, no entanto, são as razões pelas quais o 924 –apesar do uso de peças Volkswagen e Audi– se tornaria um Porsche de modo tão claro e inequívoco, tanto em termos de tecnologia de propulsão quanto de estilo. Lagaaij afirma: “O fato desse projeto ter sido desenvolvido primeiramente para a Volkswagen e ter se tornado um Porsche de sucesso, mostra o quão bem sucedido foi o projeto original”.

O carro é reconhecido até hoje como um Porsche (e dos bons), e Lagaaij explica a razão: apesar de ter sido encomenda da VW, ao desenhar o projeto ele sempre pensou em um Porsche. “O projeto para o 924 surgiu de forma puramente instintiva. E seu desenho, claro, provocou certa surpresa, já que a Porsche até ali nunca tinha produzido carros assim”.

A apenas alguns metros de distância do jovem desenhista Lagaaij, paralelo ao projeto do 924 foi criado o 928. Existem fotos do centro de desenho que mostram os dois modelos juntos. A criação do 928 também foi dirigida por Anatole Lapine. O projeto original do esportivo foi desenhado por Wolfgang Möbius. Ao examinar os dois modelos é possível observar a sinergia entre ambos. “O conceito do transeixo surgiu em função da distribuição de peso. O objetivo era uma distribuição 50/50. E só as proporções já mostram que ele foi alcançado”, explicou Lagaaij. É preciso dar um zoom nos detalhes para entender as semelhanças. Os dois modelos têm balanço dianteiro curto, capô muito longo e teto comprido. O balanço traseiro serve para acomodar a caixa de câmbio situada atrás do eixo traseiro. equilibrando perfeitamente o peso.

A maioria dos jornalistas especializados considerava o Porsche 928 com seu “eixo Weissach” traseiro auto-direcional o mais moderno carro esportivo de sua época. Em 1978 ele chegou a receber a maior premiação internacional existente: o “European Car of the Year”. Estes modelos inovadores do passado são hoje exemplares históricos cobiçados, e os modelos 924, 944, 968 e 928 se tornam cada vez mais atraentes como peças de coleção.

Quando Harm Lagaaij voltou para a Porsche em 1989, ele tinha à sua frente três modelos de série, o 944, o 928 e o 911 (964), que possuíam muitas semelhanças estilísticas entre si: “Havia na época o desejo de se alcançar uma semelhança visual como em uma família de carros, algo que era considerado como receita para o sucesso, portanto tive que dar à série esse cuidado”.

Em 1991 a Porsche apresentou os primeiros resultados desta constelação familiar, com o 968 e o 928 GTS. “O importante era mostrar com mais força o conceito estratégico de desenho”, prosseguiu Lagaaij. Em 1993 surge a série 993, seguindo a mesma linha: um 911, que se distinguia claramente de seus antecessores e apresentava a dianteira próxima do 968 e do 928. No entanto, dois anos mais tarde a era dos modelos transeixo chegou ao fim, e no início de 1995 Lagaaij já tinha -há muito tempo- tomado um novo rumo em direção ao futuro. “O objetivo era desenvolver um desenho que tivesse longa vigência”. E assim, com o primeiro Porsche Boxster e o 911 da série 996 ele respondeu e deu direção à questão da imagem do Porsche do futuro.

Importante deixar claro que que o conceito transeixo não foi uma invenção da Porsche. Como quase tudo o que é bom na indústria automotiva, foram os italianos que chegaram primeiro. Por isso, o carro que é considerado o “pai dos transeixos” parla italiano: chama-se Cisitalia 202 GT, modelo de 1946, que foi um dos carros mais importantes do século passado. Mas isso é história para outro dia…


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