Volkswagen: da glória à fraude e ao futuro incerto
No final do último mês de outubro, o conselho de trabalhadores da Volkswagen anunciou que a administração do Grupo estava considerando o fechamento de três fábricas da empresa na Alemanha (veja aqui), o que levaria à perda de dezenas de milhares de empregos, bem como à redução geral dos salários, entre outras dificuldades. Naquele mesmo mês, o Grupo Volkswagen anunciou queda de 63,7% no resultado líquido do terceiro trimestre. Com mais de US$ 209,7 bilhões em dívidas, a Volkswagen se tornou a empresa mais endividada do mundo. As suas vendas diminuíram e os seus custos -em especial de energia, pessoal, pesquisa e desenvolvimento- dispararam.
por Ricardo Caruso, com “The Conversation”
A pergunta que não quer calar: como a principal fabricante de automóveis da Europa, a maior empregadora industrial da Alemanha e um símbolo do seu estilo de capitalismo e de gestão compartilhada de maneira harmoniosa entre acionistas e sindicatos, chegou a este ponto? Frédéric Fréry, professor de Estratégia da Centrale Supélec (ESCP Business School), em Paris, num texto recentemente publicado, deixou algumas pistas. Confira.
UM MODELO ALEMÃO
O engenheiro austríaco Ferdinand Porsche fundou a Volkswagen em maio de 1937, em resposta a um pedido de Adolf Hitler para a criação de um carro popular, um “carro do povo” (literalmente “volkswagen” em alemão). O resultado foi o Fusca, veículo robusto, prático e econômico, que vendeu mais de 21 milhões de unidades em sua longa trajetória, sucedendo o Ford Model T como o modelo de maior sucesso da história do automóvel. Desse total, cerca de 3,3 milhões de Fusca foram feitos no Brasil, entre 1959 e 1996.
No entanto, no final da década de 1960, o desenho do Fusca –projeto que incluía motor traseiro arrefecido a ar e tração traseira– mostrou as suas limitações. A salvação da empresa residiu na aquisição das concorrentes Auto Union e NSU, fundidas na marca Audi, que trouxeram consigo a experiência na concepção de veículos com tração dianteira. A Volkswagen tornou-se então um verdadeiro Grupo automotivo, e o Golf (que tinha motor dianteiro “a água” e tração dianteira), lançado em 1974, foi o símbolo do seu renascimento.
Nas décadas de 1980 e 1990, o Grupo Volkswagen expandiu-se rapidamente por meio de aquisições, com a compra da Seat espanhola em 1988, da Skoda da República Tcheca em 1991 e depois da Bentley (Inglaterra) e da Lamborghini (Itália) em 1998. No Brasil adquiriu e fulminou a DKW Vemag e a Chrysler. O Grupo adquiriu também os caminhões MAN e Scania, motos Ducati e hiper-carros Bugatti. A sua quota no mercado europeu aumentou de 12% em 1980 para 25% em 2020. Em 2017, o Grupo VW ultrapassou pela primeira vez a Toyota, como fabricante automóvel líder mundial. A Volkswagen estava então no auge da sua glória, com um slogan bem pertinente: “Das Auto” (“O Automóvel”).
O DIESELGATE
Mas as engrenagens da empresa começaram a emperrar nos Estados Unidos. Em 2015, a Agência Federal de Proteção Ambiental americana revelou que o motor diesel Volkswagen TDI tipo EA 189 emitia até 22 vezes mais óxido de nitrogênio (NOx) do que o padrão permitido. A Volkswagen admitiu que, desde 2009, equipou os seus veículos com um software capaz de identificar fases de testes e reduzir de forma temporária as emissões de NOx, como as rodas de um eixo paradas e as de outro eixo se movendo, o que acontece numa posição de testes e medições em bancada. Em circunstâncias normais, o software ficava inoperante, o que fazia com que os veículos poluíssem muito mais do que o anunciado, constituindo fraude perante as autoridades e engano aos clientes. O motor EA 189 foi comercializado em mais de 11 milhões de veículos do Grupo, distribuídos por 32 modelos, inclusive aqui no Brasil. No Brasil não, mas no mundo mais civilizado a preocupação ambiental é grande.
O escândalo, batizado de “dieselgate” foi estrondoso. Conforme se multiplicavam as ações judiciais nos Estados Unidos e na Europa, o preço das ações da Volkswagen desabou 40% na bolsa de valores de Frankfurt, na Alemanha. O presidente do conselho de administração do Grupo foi forçado a se demitir. Neste ano de 2024, antes de todas as sentenças judiciais terem sido proferidas, estima-se que o caso já tenha custado à Volkswagen mais de US$ 33,5 bilhões, o preço de uma ganância inexplicável que não avaliou os riscos envolvidos. O custo/benefício foi terrível.
Para se redimir da imagem desastrosa dos seus motores diesel, a Volkswagen lançou um plano colossal de conversão de sua produção para veículos elétricos, anunciando investimentos de US$ 128 bilhões em 2023. Mas os seus primeiros modelos elétricos não foram suficientemente competitivos para rivalizar com os da Tesla e, principalmente, com os fabricantes chineses, fora a luta atual para convencer o mercado, que está retraído desde a pandemia da Covid-19.
LENTIDÃO NOS NEGÓCIOS
De um modo mais geral, pelo menos desde o início da década de 2000, o núcleo que cuida da estratégia do Grupo Volkswagen tem sido relativamente claro, na verdade compartilhado pela maior parte da indústria alemã, com o apoio ativo dos antigos chanceleres Gerhard Schröder e Angela Merkel: vender produtos de qualidade alemã fabricados com gás russo a clientes chineses. No entanto, dois acontecimentos direcionaram este modelo de negócio para o abismo: o embargo europeu ao gás russo após a invasão da Ucrânia por Moscou, que fez disparar o custo da energia e, acima de tudo, a ambição da China de ter seu setor automotivo autossuficiente.
Na década de 1970, a Volkswagen foi um dos primeiros fabricantes ocidentais a investir na China, tendo liderado o mercado local durante mais de 25 anos. Em meados da década de 2000, embora quase todos os táxis de Xangai fossem carros da Volkswagen, os dirigentes do Partido Comunista Chinês tinham que dirigir -ou serem levados em- Audi A6 preto com vidros escurecidos. A Volkswagen até concebeu especificamente modelos alongados do A6 de acordo com os desejos do Partido, e os ocidentais de atividades menos “conservadoras” que se abrigavam em Pequim também compraram A6 pretos com vidros escuros, sabendo que nenhum policial se arriscaria a incomodá-los, por medo de ter que lidar com uma figura política influente.
A CHINA ROSNOU
Nos últimos anos, porém, as instruções do Partido Comunista Chinês aos seus cidadãos –e aos seus dirigentes– mudaram: devem agora usar carros chineses. Esta inversão é particularmente problemática para a rentabilidade do Grupo Volkswagen. A Audi tornou-se a sua principal fonte de lucros, e a maior parte desses lucros chegava da China. Mas esses tempos passaram, para não falar do fato de fabricantes chineses como a BYD e GWM –claramente apoiados pelo governo chinês– terem desenvolvido excelentes veículos elétricos.
A propósito, destacou o autor do estudo, o rótulo “Made in Germany”, que durante décadas garantiu o sucesso mundial dos produtos alemães, é na verdade originário de uma infâmia exigida pelos industriais britânicos no século XIX, ressentidos de ver cópias alemãs medíocres dos seus produtos a baixos preços. Assim, para vender no Reino Unido, os fabricantes alemães tinham que rotular sistematicamente os seus produtos como “Made in Germany”, o que despertava a mesma suspeita dos atuais “Made in China”…
COMANDO RESTRITO
Além da estagnação da estratégia da Volkswagen, a direção do Grupo também é particularmente problemática. O fundador da Volkswagen, Ferdinand Porsche, teve dois filhos: Louise e Ferdinand (apelidado de “Ferry”). Em 1928, Louise casou-se com o advogado Anton Piëch, que dirigiu a principal fábrica da Volkswagen de 1941 a 1945, período da II Guerra Mundial. Ferry, por sua vez, expandiu enormemente a marca de automóveis esportivos Porsche, fundada pelo seu pai em 1931.
Durante décadas, os primos Piëch e Porsche se envolveram numa competição feroz pelo controle da Volkswagen, que atingiu o seu auge em 2007, quando a Porsche tentou comprar o Grupo Volkswagen, que era 15 vezes maior; o fracasso desse esforço resultou na aquisição da Porsche pela Volkswagen.
A figura central nesta reviravolta foi Ferdinand Piëch, filho de Louise, que iniciou a sua carreira com o tio Ferry antes de se juntar à Audi e se tornar presidente do conselho de administração do Grupo Volkswagen em 1993, e depois do conselho fiscal em 2002. Possuindo conhecimentos profundo do Grupo (e da Porsche, na qual tinha participação de 13,2%), Piëch conquistou o apoio do governo alemão da Baixa Saxônia, onde a Volkswagen está sediada e que detém 20% das suas ações. O antigo responsável do Estado foi Gerhard Schröder, chanceler alemão entre 1998 e 2005. Este emaranhado de lutas familiares e influências políticas não proporcionou tranquilidade à gestão do Grupo Volkswagen. Além disso, as práticas de gestão eram frequentemente tóxicas.
RELACIONAMENTO TÓXICO
Influenciada pelas rivalidades familiares e pela arrogância que resultava no fato de ser a líder mundial no segmento, a cultura de gestão da Volkswagen desviou-se numa direção que poderia ser melhor descrita como tóxica durante a era de Ferdinand Piëch.
Conhecido pela sua intransigência, ambição e autoritarismo, Ferdinand Piëch despediu frequentemente dirigentes e executivos que considerava terem desempenho insatisfatório. Era frequente, quando um subordinado lhe apresentava um problema que não conseguia resolver, ele dizer “Eu sei o nome do teu sucessor…”. Não hesitava em cumprir esta ameaça, o que pode explicar por que alguns dos dirigentes da empresa assumiram riscos imprudentes, especialmente no caso “dieselgate”.
Desde a fraude nos motores diesel, vários presidentes do conselho de administração do Grupo Volkswagen apelaram para o surgimento de uma nova cultura empresarial, mais descentralizada e que incentivasse as pessoas a se manifestarem, mesmo como denunciantes. Mas mudar a cultura é uma das tarefas de gestão mais difíceis que existe, e a urgência da situação da Volkswagen não torna isso fácil.
O que reserva o futuro para a empresa? Entre o colapso das suas receitas vindas da China, a falta de sucesso nos veículos elétricos, as consequências ainda latentes do “dieselgate”, a dívida colossal e a necessidade de rever a estratégia, o futuro é absolutamente instável. Mas uma coisa é certa: tal como afirmou um antigo executivo da General Motors na década de 1950, que “o que é bom para a GM é bom para a América”, é fácil imaginar que a Alemanha não desistirá da Volkswagen com facilidade. Afinal, a graças ao sucesso da empresa, a Volkswagen tornou-se um verdadeiro ícone alemão. Por outro lado, nada dura para sempre…