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Quando a Bugatti fabricou trens…

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É isso mesmo. Em 1926, Ettore Bugatti apresentou o Bugatti Type 41, modelo de automóvel adequado para abonados e realeza em geral, que hoje é tratado como uma verdadeira obra de arte sobre rodas. Com mais de seis metros de comprimento, o Bugatti Type 41 apresentava motor de oito cilindros em linha, com nada menos que 12.800 cm3 de cilindrada acomodado sob seu longo capô. Tudo era tão exagerado que o capô exigia duas pessoas para erguê-lo, enquanto a distância entre-eixos do carro se estendia por 4,3 metros.

por Ricardo Caruso

O gigantesco motor tinha 300 cv de potência máxima a apenas 1.800 rpm e era capaz de levar o Type 41 e suas impressionantes 3,5 toneladas de peso à velocidade máxima de 200 km/h. Entre os recursos avançados para a época aplicados no motor estavam comandos de válvulas que acionavam três válvulas por cilindro, câmaras de combustão com duas velas de ignição cada ao invés de uma e sistema de lubrificação com cárter seco usado em modelos de competição.

O primeiro modelo produzido, um Royale –com elegante carroceria roadster– foi vendido em 1932, mas, apesar das características excepcionais, não se tornou um sucesso econômico. A Grande Depressão –crise financeira global que durou uma década– e suas consequências fizeram com que potenciais compradores simplesmente não aparecessem. Por conta do preço exorbitante do carro, ele nunca foi capaz de fabricar as 25 unidades que havia planejado. Ao mesmo tempo, a produção do resto da linha, o Type 46 e o Type 50, despencou a partir de 1930. Ettore Bugatti deparou-se então com dois problemas: o que fazer com os 600 funcionários e onde usar os motores em estoque.

Em 1933, seis unidades do carro e 25 motores foram construídos, mas apenas quatro do Bugatti Type 41 Royale foram vendidos.

Embora muito inovador em todos os sentidos, o Royale e seu sofisticado motor ocupavam um lugar muito especial no coração de Ettore e, por isso, ele pegou seu engenhoso projeto de motor e o aplicou para dar à rede ferroviária francesa com um novo tipo de trem expresso, o Bugatti WR (WR de Wagon Rapide).

Apesar da bem desenvolvida, a infraestrutura ferroviária francesa era impulsionada por pesadas máquinas a vapor. Esta situação estava ameaçada pelo aumento da concorrência dos automóveis e ônibus. O trem inovador de Ettore, de alguma forma inspirado no Royale, queria levar as ferrovias francesas para uma nova era. As modificações permitiram que o motor de oito cilindros do Royale fosse reconfigurado e usado nos novos vagões que desenvolveu para as ferrovias francesas. Em apenas nove meses, ele projetou e desenvolveu o modelo para entregar uma nova geração de viagens de trem de alta velocidade e luxo.

Nos primeiros testes de homologação, a combinação de potência, construção leve e eficiência aerodinâmica do elegante trem permitiu que ele atingisse a velocidade máxima de 172 km/h, um recorde para viagens de trem na época. Suas superfícies e formas foram otimizadas para melhorar a aerodinâmica. Em 1934, uma versão evoluída tornou-se o trem mais rápido do mundo, estabelecendo um novo recorde com 196 km/h. Desempenho como esse permitiu que as empresas ferroviárias reduzissem drasticamente os tempos de viagem, possibilitando serviços mais rápidos e confortáveis, e de longa distância.

Os vagões que a Bugatti desenvolveu e fabricou foram revolucionários em termos de aerodinâmica e desempenho. Eles também representaram momentos de ruptura em termos estéticos. O projeto do Bugatti WR era muito inovador para os anos 1930. Para a propulsão, utilizava quatro motores do Royale, de 8 cilindros em linha, que ofereciam a potência total de 800 cv e uma cilindrada acumulada de mais de 50 litros. Os motores estavam localizados no centro do trem. E ainda havia o cockpit. Sim, uma estranha cúpula se destacando no teto.

Ettore foi ainda pioneiro em um projeto que resultou no primeiro trem que colocou o maquinista em uma cabine específica, localizada centralmente. Isso permitiu que o condutor realizasse tarefas operacionais e logísticas com muito mais facilidade, eficiência e segurança, dando-lhe visão completa de 360°.

O consumo dos quatro motores de 8 cilindros era algo épico, e logo a administração e as concessionárias ferroviárias pediram uma versão mais barata e econômica. Assim nasceu o Bugatti WL (WL para Wagon Legere, Vagão Leve) movido por dois motores Royale de 8 cilindros com potência total de 400 cv.

O estilo interior e a funcionalidade dos trens Bugatti foram igualmente radicais, oferecendo aos passageiros criar um ambiente personalizado a partir de uma configuração totalmente flexível; permitia que os assentos girassem, para que os passageiros escolhessem entre ficar voltados para a frente ou sentados na direção oposta, em bancos muito confortáveis.

No total, 88 unidades do trem Bugatti foram fabricadas em diferentes configurações, embora a maioria dos carros fosse do tipo WL de 400 cv (56 unidades). Alguns carros WR eram duplos ou triplos, enquanto os WL eram divididos igualmente entre versões longas e extra-longas. Havia também cinco vagões sem motor que serviam para completar a composição de alguns comboios.

Essas conquistas permitiram que a Bugatti não apenas sobrevivesse à turbulência financeira da década de 1930, mas também retornasse mais forte na produção de automóveis. Embora com apenas dois motores, o consumo de combustível também era alto. Além disso, cada motor precisava ser reparado a cada 90 mil km na fábrica da Bugatti. Isso também aconteceu com os freios, potentes mas muito requisitados e que exigem manutenção com intervalos muito curtos. E para completar, os Bugatti não eram motores exatamente confiáveis.

Em 1939, com a Segunda Guerra Mundial, os trens da Bugatti deixaram de circular e só voltaram ao serviço no final de 1945. Os vagões WR de 800 cv deixaram progressivamente o serviço entre 1952 e 1953, enquanto os WL de 400 cv continuaram a servir até 1958. Um único vagão Bugatti permaneceu em serviço até 1972, como veículo de teste para checar o correto funcionamento da sinalização do sistema de trens e trânsito e sua manutenção.

Dos 88 trens construídos pela Bugatti, apenas um exemplar sobreviveu: o “Le Présidentiel”, que foi um dos primeiros vagões entregues pela Bugatti e operados pela ETAT.

A carreira dos Bugatti WR nos serviços regulares foi encerrada em 1958. Apenas um exemplar sobreviveu, justamente o vagão das fotos. Feito em 1934, ele serviu como trem de testes e foi todo restaurado. Hoje, o local de descanso de “Le Présidentiel” é a Cité du Train, em Mulhouse, dirigida por Sylvain Vernerey. Mais de 150 trens e máquinas ferroviárias que datam a partir de 1827 podem ser vistos no museu, que é a maior exposição desse tipo na Europa.


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