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1/5/94: O dia em que Deus não foi brasileiro

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Frank Williams e Senna, 1983, 11 anos antes da tragédia.
Frank Williams e Senna, 1983, 11 anos antes da tragédia.

O ano era 1994. Ano em que o presidente dos Estados Unidos era Bill Clinton, um terremoto sacudiu Los Angeles, a “Lista de Schindler” ganhou sete Oscar, morreu Richard Nixon, o jogador colombiano Andres Escobar foi assassinado, George Foreman unificou os títulos de peso-pesado no box, a união civil entre pessoas do mesmo sexo foi aprovada na Suécia e o cinema perdeu, entre outros, Cesar Romero e Telly Savalas, o “Kojak”.

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Mas o ano ficou marcado, acima de tudo, pela morte de Ayrton Senna, quando no dia 1º. de maio, às 14:17 hs, sua Williams bateu na curva Tamburello, em Imola, no GP de San Marino. O resto da história foi contada e recontada, mas cabe ainda uma análise: onde estavam os erros da Williams FW16, carro que encerrou a carreira do brasileiro três vezes campeão do mundo.

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Na verdade, uma tragédia acontece depois de uma sucessão de fatos que levam a isso. Assim foi com Senna, que começou a morrer um ano antes, quando Frank Williams surpreendeu a todos e aceitou as mudanças radicais impostas pela FIA no regulamento da categoria para o próximo ano.

ELETRÔNICA

A Williams, naquele ano de 1993, tinha grande vantagem técnica sobre as demais equipes, não muito diferente do que aconteceu com a RBR nos últimos anos e com a Mercedes atualmente. O novo regulamento anulava todas as vantagens da Williams, proibindo o uso de muitos recursos eletrônicos. Na prática, a previsão era de que isso deixaria os carros muito instáveis. Naquela época, a Williams usava no campeonato o FW15C Renault, carro que foi campeão do mundo com Alain Prost. Para Senna, era mais que um objeto de desejo, era um “carro do outro planeta”.

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Senna já conhecia Frank Williams há tempos. Em 1983, por conta de seu desempenho nas provas de Fórmula 3, ganhou uma série de testes em Donnington. Em julho daquele ano, pode acelerar –e bem- a Williams FW08C.

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Ayrton estava insatisfeito com a McLaren-Honda, e como de bobo não tinha nada, começou a difícil negociação com Frank Williams. O melhor carro estaria nas mãos do melhor piloto, uma dupla que marcaria época na Fórmula 1. Marcou, mas da forma que ninguém esperava. Com a aposentadoria de Prost, Frank Williams precisava de um piloto como Ayrton Senna, e no final de 1993, o brasileiro assinou seu sonhado contrato com a Williams. O carro, projetado por Adrian Newey, “do outro planeta”, seria seu pelos próximos dois anos. Newey teve passagem pela equipe Fittipaldi e March, e assina os carros vitoriosos da RBR pilotados por Sebastian Vettel.

EVOLUÇÃO

O FW15 surgiu em 1992 e evoluiu em 1993 para o FW15B e FW 15C adequados ao regulamento daquele. Dois FW15C de 1993 perderam toda a parte eletrônica e viraram momentaneamente os FW15D. Foram estes dois FW15D que a Williams levou para a pista de Estoril, em 19 de janeiro de 1994, para apresentar a dupla Senna e Damon Hill, e para que os pilotos tivessem um primeiro contato com o que evoluiria para o FW16. Senna não gostou do carro sem eletrônica: “este carro é inguiável”. Adrian Newey percebeu que teria muito trabalho pela frente.

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Em fevereiro de 1994 começariam para valer os testes com o novo FW16, oficialmente a estréia de Ayrton Senna no carro azul da Williams Renault. A previsão óbvia é de que Senna dominaria a temporada, não teria adversários e venceria o campeonato com facilidade. Até então, a Williams era a melhor equipe, com o melhor projetista, melhor motor e melhor piloto. O motor Renault V10 era excelente e o patrocínio da Rothmans era milionário. O motor era um V10, com os cilindros montados num ângulo de 67 graus. Desenvolvido pela Renault Sport, era chamado de RS6, com 820 cv de potência. A caixa de câmbio era transversal, pequena e leve, de seis marchas.

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Quando a FIA proibiu os recursos eletrônicos dos carros de Fórmula 1, como freios ABS, acelerador eletrônico “fly-by-wire”, os câmbios automáticos e suspensões ativas, entre outros., a Williams perdeu sua vantagem. Os últimos dois carros da equipe foram vencedores, o FW14B e o FW15C, que eram apenas evoluções do FW14 de 1991. Os carros de 1991/1992/1993 são muito parecidos, e se diferenciam basicamente na parte eletrônica.

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O FW14 de 1991 tinha a parte aerodinâmica bem cuidada, era bastante baixo em relação ao piso e era equipado com câmbio semi-automático. Ainda não tinha suspensão ativa, e por isso em pistas com asfalto mais ondulado, perdia um pouco de aderência, mas no asfalto liso, era muito rápido nas retas e curvas. Para 1992, maior dose de eletrônica -freios ABS, acelerador eletrônico, câmbio automático e suspensão ativa- deixaram a Williams quase imbatível, a ponto de tornar Nigel Mansell campeão do mundo.

SEM RECLAMAR

Em 1993, o carro ganhou retoques na aerodinâmica, mas manteve a eletrônica e adotou bico mais baixo. A superioridade era tamanha que, durante a temporada de 1993, a FIA decidiu proibir os recursos eletrônicos para a temporada seguinte, o que estranhamente foi aceito pela equipe, provavelmente uma negociação imposta por Bernie Ecclestone. Adrian Newey e Patrick Head tiveram que começar um novo projeto –o FW16- praticamente do zero. Houve clara preocupação com o espetáculo, e não com a segurança.

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Adrian Newey trabalhou na ideia de um carro baixo, conceito que já aplicara na March. Com a suspensão ativa trabalhando bem, o carro se beneficiava de manter sempre a mesma distância do chassi em relação ao solo, o que facilita também o trabalho aerodinâmico. Com isso, o downforce aplicado era praticamente o mesmo em retas e curvas, permitindo maior velocidade.

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Com a experiência ruim dos FW15D rodando sem eletrônica em Estoril, a Williams teve muito pouco tempo para criar o FW16, na verdade uma evolução dos carros anteriores. Newey trabalhou na baixa altura do carro, mas sem a eletrônica, e assim a Williams perdeu parte de sua força, que era a atuação aerodinâmica. O FW16, por causa disso, nasceu errado.

NA PISTA

Quando Ayrton Senna testou pela primeira vez no FW16, novamente no Estoril, em fevereiro de 1994, percebeu que o carro era tão ruim quanto o FW15D. O carro de seus sonhos era muito ruim; o motor ajudava nas retas, mas a pouca altura (que exige mínimo curso das suspensões) o deixava péssimo nas curvas. A pista do Estoril tinha algumas ondulações, poucas mas suficientes para Senna saber que tinha um grande desafio pela frente.

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No primeiro GP do ano, no Brasil, Senna fez a pole e liderava. Parou no box ao mesmo tempo que Michael Schumacher, mas o alemão teve sua Benetton estranhamente reabastecida em menor tempo, voltou na frente e ganhou a prova. Meses depois descobriram que a equipe havia retirado uma válvula do sistema de bombeamento de combustível, o que tornava a operação mais rápida. No ondulado asfalto de Interlagos, só o talento de Senna para fazer a FW16 render bem. Acabou rodando no final, e ficou a certeza de o carro da Williams não era mais o melhor da categoria.

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Senna estava insatisfeito e pediu alterações no carro. A primeira delas o condenou à morte. Pediu para que o volante fosse posicionado mais para cima, para que suas mãos não batessem nas laterais do carro. Na pressa, a Williams simplesmente cortou a barra de direção, acrescentou cerca de 5 cm e soldou de novo. Assim, a barra foi alongada e o volante ficou mais perto do piloto.

TUDO ERRADO

Era notório que Adrian Newey tinha errado no projeto, e a equipe passou a trabalhar incansavelmente para recuperar o tempo perdido. Esqueceu assim de substituir a barra de direção por uma inteiriça e definitiva. Ao mesmo tempo, era claro que a Benetton B194 de Michael Schumacher estava fora do regulamento, com algum truque escondido no gerenciamento eletrônico do motor (fora o caso do sistema de reabastecimento). A suspeita era de que tinha algum tipo de controle de tração, que estava proibido pela FIA.

1994 Pacific Grand Prix.

Ayrton pediu para que a direção da Williams intercedesse nisso, mas a equipe decidiu não recorrer à FIA, o que deixou Senna mais preocupado. A FIA queria quebrar a hegemonia da Williams para que as corridas ficassem mais interessantes e atraísse maior audiência para a TV, e provavelmente deixou a Benetton de lado por conta disso.

1994 Formula One World Championship

No segundo GP, do Pacífico, no Japão, Senna fez a pole mas bateu na largada. Para Imola, terceira etapa, a Williams fez acertos na suspensão; modificou o bico do carro, que ficou levemente mais alto; alterou a aerodinâmica; modificou a distância entre-eixos e mudou a pintura do cockpit. Mas a barra de direção soldada continuava lá.

EM IMOLA

Durante os treinos e warm up, Senna notou uma vibração na direção. Em reunião antes da corrida com Frank Williams e o pessoal da Goodyear, foi discutido que o problema vinha dos pneus. Não era, o problema estava na barra de direção fadigada, começando a trincar. Frank Williams ainda ameaçou os técnicos da Goodyear: ”Se algo acontecer com ele, a culpa é de vocês”.

Grand Prix of San Marino

O que veio em seguida todos sabem. Destroçada pela morte de Ayrton Senna, a Williams foi obrigada a seguir a temporada, num longo e doloroso trabalho de reestruturação. Damon Hill passou para primeiro piloto da equipe, e a vaga deixada por Senna ficou com Dave Coulthard. A primeira vitória veio com Hill, duas corridas depois de Imola, no GP da Espanha. O carro continuou evoluindo, e virou FW16B a partir do GP da Alemanha. Os pedidos feitos pelo brasileiro para as demais etapas foram aplicadas no FW16. A evolução do carro foi grande, e aos poucos Damon Hill começou a incomodar a Benetton de Schumacher.  O FW16B tinha maior distância entre-eixos, outras asas dianteira e traseira e mudanças na tomada de ar.

Ayrton Senna

Descoberta a fraude da Benetton, Schumacher ainda recebeu duas corridas de suspensão por não ter respeitado uma bandeira preta, e isso permitiu que Hill se aproximasse do alemão na classificação geral. Depois da vitória no GP do Japão, Damon Hill chegou à última etapa do campeonato apenas um ponto atrás de Schumacher.

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Existiu ainda o FW16C, na verdade um carro de teste com o motor 3.0 especificado para 1995 pelo regulamento (em 1994 era 3.5). Foi usado entre 20 e 22 de dezembro de 1994 em Paul Ricard, pilotado por Damon Hill, Jean-Christophe Boullion e Emmanuel Collard. E depois disso encerrou a triste carreira do “carro dos sonhos” de Ayrton Senna.

ENFIM VENCEDOR

O FW16 que matou Senna foi apreendido pela polícia italiana e ficou à disposição da justiça daquele país até 2002, quando retornou para a equipe e foi totalmente destruído por ordem de Frank Williams. Estranhamente, logo após o acidente a Williams retirou do carro a central de gerenciamento do motor, devolvendo para as autoridades dias depois. O que ela esconderia?

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A conclusão foi de que a barra de direção partiu exatamente na solda e deixou o carro fora de controle, num ponto crucial da pista. Na batida contra o muro, um braço da suspensão se rompeu e atingiu a cabeça de Senna, logo acima do supercílio direito, causando sua morte imediata. Como no dia anterior, a prova não foi interrompida.

F1 BRAZIL SENNA

A Williams FW 16 foi pilotada por Ayrton Senna (com o número 2), Damon Hill (número 0), David Coulthard e Nigel Mansell (quatro provas, com o número 2). Foram 16 provas, sete vitórias (seis com Hill e uma com Mansell), seis poles, cinco voltas mais rápidas e 118 pontos. Venceu o Mundial de Construtores com 118 pontos. No fim das contas, tornou-se um carro vencedor.

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O título de 1994 ficou com o piloto alemão, mas todos ainda se perguntam: com a evolução da FW16 iniciada por Senna e que deu resultado nas etapas europeias, o que teria acontecido com a Fórmula 1 depois daquele dia em Deus se distraiu e deixou de ser brasileiro por alguns momentos? Nunca se saberá, mas dá para ter uma ideia.


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