Eu e o Josias, o Josias e eu
Há um ano, o Josias Silveira nos deixou. Confesso que até hoje não me recuperei dessa perda. E levei exatamente um ano para tentar escrever algo sobre isso. Mas continuo travado e vou rabiscar aqui alguma coisa. Nos conhecemos na metade dos anos 1980, quando ele havia acabado de lançar a revista OFICINA MECÂNICA. Eu trabalhava no DIÁRIO DO GRANDE ABC, havia saído da AUTOESPORTE e ele procurava alguém que gostasse de automóveis. A amiga de uma amiga me indicou, e lá fui eu ver do que se tratava.
Na época meus carros de uso eram um Dodge Charger R/T e uma Puma GTB. Chego na editora, na Vila Mariana, e estaciono ao lado de uma perua Maverick verde, meio surrada. Era um dos carros do Josias, os outros eram um Fusca marrom de “janelinha”, uma Alfa Romeo 2300 (que tinha o péssimo hábito de soltar o volante nas horas mais impróprias) e um Porsche 914 com motor VW 2300. Nos entendemos de cara.
Ele era meio arredio, de poucas palavras e sequer gostava de dar a mão para cumprimentar as pessoas. Talvez tímido ou sem educação mesmo, mas sempre repleto de histórias para contar. A coisa fluiu bem, rapidamente nos tornamos amigos, passei a ser o redator-chefe da revista e essa parceria durou uns 10 anos, até que fui fazer voo solo e criar com meu irmão Rubens e com o Ricardo Dilser nossa própria revista, a AUTO&TÉCNICA, que durou mais uns 20 anos. Até brigamos sabe-se lá por que, e ficamos um ano sem conversar. Rimos muito disso depois.
Histórias? Muitas, incontáveis, do primeiro teste de um Chevette que fizemos junto, lá nos anos 1980, até o lançamento do Fiat Pulse, no ano passado, poucos dias antes de ele nos deixar. Para esse evento, eu fui com minha perua Escort, e ele me encontrou pelo caminho, com um Mustang de teste. Além de me infernizar o tempo todo, ao chegar reafirmou sua fama de pão-duro: reclamou horas do consumo do Ford V8, como se não lembrasse a quantidade de carros V8 que tivemos pelo caminho.
Falávamos quase todos os dias, ríamos muito do passado e fazíamos alguns poucos planos para o futuro. Fazia parte dessa “quadrilha” o Douglas Mendonça, também parceiro de toda nossa vida profissional. Terminado os Salões de Detroit, íamos para Orlando para nossa merecida semana de férias e compras de quinquilharias, os três gastando horas no Pep Boys e lojas de ferramentas.
Quando montei a Eagle Rodas, em Campinas, adivinha quem virou freguês? Me tornei o “consultor-de-rodas-velhas” para ele, conseguindo impedir que usasse rodas de terceira linha nos seus carros.
Rodamos meio mundo –literalmente- em eventos e testes, cada um rendendo gargalhadas e histórias para contar. Elas foram parar no livro “Sorvete de Graxa”, escrito por ele. Claro que havia uma incompatibilidade nos nossos testes. Ele queria fumar dentro do carro (o que eu abomino), eu queria ar condicionado e música alta (o que ele abominava). O máximo que conseguia nessa negociação era que ele fumasse com o vidro aberto…
Nesses quase 40 anos, impliquei com ele à exaustão. Minha implicância com os cigarros, que ele fumava um atrás do outro, era constante. Com o Bob Sharp também. Mas não adiantou, fumante é um ser teimoso. Lembro uma vez chegando em Detroit, neve pesada, e vejo ele do lado de fora do aeroporto, fumando. Saio, paro ao lado dele com muitos graus abaixo de zero, e fico só olhando. Ele pergunta: O que você está fazendo aqui”? Respondo: “Estou de plantão. Quando você enfartar por causa dessa porra, alguém precisa puxar você para dentro do aeroporto”. E tome uma chuvarada de ofensas e justificativas.
Nos tornamos amigos pessoais, muito amigos. Sempre trocando ideias sobre a profissão e problemas familiares. Vi ele chorar, vi ele rir, vi ele orgulhoso dos filhos Badú e Pinho, vi ele apaixonado pelas netas e pelo netinho (que havia acabado de nascer) e dividi com ele muitas preocupações com a Patrícia, sua filha adotiva.
Certa vez entrei na sua sala na editora e encontrei ele arrasado. Me contou que seu cachorro havia sido atropelado e morreu. Ele estava destruído, muito mal mesmo. Fechei a porta e falei: “Chora, cacete”. E ele relutou e, enfim, desabou, chorando como criança, como eu nunca havia visto.
E também rimos muito, como quando ele chegou na Redação depois de uma aula de natação com o cabelo tão verde quanto a bandeira do Brasil. Alguma reação do cloro da água com alguma porcaria que ele havia passado na cabeça. Ou quando seu carro quebrou numa avenida repleta de travestis, e ele foi ajudado por um, que era mecânico durante o dia. Ou da sopa de chilli que ele e o Douglas Mendonça a tomavam nos Estados Unidos, que ardia até o olho.
Também tivemos esse diálogo a seguir, surreal. Eu e o Bob Sharp descemos para a Rio-Santos para algum teste. Tudo atrasou e almoçamos em um posto pelo caminho. Trouxe a nota fiscal, a dinheiro de hoje uns 30 reais, e entreguei para a Ulla, que era a assistente dele. A Ulla olhou, e disparou: “Hummmm… o tio não vai gostar”. Dias depois ele me chamou na sua sala, branco quase transparente, olha para a nota fiscal aberta na mesa e dispara: “Caruso, o que é isso?” Expliquei, já rindo por dentro. Ele pergunta, sério: “Você quer me quebrar”? Disse que não, que só queria o reembolso (palavra proibida para ele). Arrasado, ele assinou a nota e finalizou: “Dessa vez tudo bem. Mas na próxima vez, leva um lanchinho de casa”. Cansei de repetir essa história para ele, que dizia não se lembrar…
Nos últimos tempos, ele estava cansado e decepcionado com a profissão, com as empresas do setor e com os “amigos”. Dono de um texto brilhante e divertido, profundo conhecedor de mecânica, apaixonado por carros e motos e sempre deixando transparecer bom humor, mesmo nas piores situações, era um sujeito único. Como muitos, se sentia desprestigiado pelo mercado (“Tem um bando de filhas da puta por aí, mas também tem algumas pessoas legais”, repetia).
Foi o “tio” de uma nova geração de jornalistas da área, inspirou muita gente, deu oportunidades, criou muitas revistas… Enfim, teve grande importância no jornalismo automotivo. De cada pessoa que conheceu nesse meio, tinha uma história engraçada para contar.
Para mim, os 10 anos de idade que ele tinha a mais era a dose de maturidade que me faltava. Eu mais explosivo, ele sempre mais ponderado; eu querendo “chutar o balde”, ele buscando outras saídas: “Calma, gorda, respira”. Era o irmão mais velho que eu não tive, conselheiro, bom texto e boas pautas. Criamos na OFICINA MECÂNICA uma espécie de “Manual de Redação”, que aplico até hoje e lembro todos os dias, a cada texto que escrevo.
Há um ano ele não me liga mais, mas me visita em sonhos, algo que o espiritismo explica. Era evangélico, mas conversávamos muito sobre energias, espiritismo e coisas místicas, como chegar em um quarto de hotel e acender um incenso, para “espantar as energias ruins que deixaram”. Guardo comigo histórias impublicáveis e tenho profundo respeito e admiração pelo meu amigo Josias Silveira. Teimoso, turrão, pão-duro, engraçado, impaciente e correto, muito correto. O nosso meio é que não foi correto com ele. Algo que me incomodou: um velho jornalista, conhecido pela falta de caráter do mesmo tamanho da sua falta de cobertura capilar, havia sido demitido por justa causa da publicação onde trabalhava, no começo dos anos 1990. Eu e o Josias debatemos e ponderamos, e ele acabou contratando o sujeito, que foi assim recuperado para o mercado. Pois na passagem do Josias, não publicou uma linha sequer, seja de respeito, seja de agradecimento.
Quando alguém que você gosta morre, um pedaço de você morre junto. E assim é. Me preocupava com ele em relação a carros e motos. As motos, ele estava acelerando menos, mas os carros não. Estava com o pé pesado. Partiu dormindo, o que é um presente de Deus. Lembra da história lá no começo, de que ele sequer dava a mão? Ele mudou muito, a ponto de nos cumprimentarmos no melhor estilo italiano, com um abraço e beijo no rosto.
Eu e o Douglas Mendonça sentimos muita falta dele, mesmo.
Até um dia, chefe!!!
Ricardo Caruso