Blog dos Caruso

O genial e implacável Sergio Marchionne

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Forçado a abandonar a “sua” Fiat devido a um gravíssimo problema de saúde, que o levou à morte –a imprensa italiana especulava que o executivo, de 66 anos estava em coma profundo e com danos irreversíveis devido a um câncer no pulmão devido ao vício exagerado do cigarro– Sergio Marchionne sempre foi um chefão diferente dos demais. Odiava ternos e gravatas, era inseparável do seu pulôver nas costas e não se inibia expressar as suas ideias, mesmo que muitas vezes politicamente incorretas.

 

“Não sou um bom

profeta do futuro”

Em 2014, por exemplo, pediu encarecidamente que ninguém comprasse o Fiat 500e elétrico, pois a marca tinha desenvolvido o carro apenas para cumprir as regras sobre emissões do Estado da Califórnia (ou seja, para baixar a média de CO2 da linha vendida pela Fiat), e que por isso perdia US$ 14 milem cada carro vendido!

Resistiu de forma dura às múltiplas propostas de compra da Alfa Romeo feitas por Ferdinand Piech, da Volkswagen. Pelo caminho não se limitou a dizer que o Grupo Volkswagen deveria era preocupar-se com em recuperar a Seat e não perder tempo a comprar mais marcas. E mais: recusou-se a vender os nomes Q2 e Q4, registrados pela Fiat para os seus modelos para a Audi quando esta quis lançar a sua linha de SUVs. Claro que tudo se resolveu com um pagamento generoso do Grupo VW à Fiat.

“Estou absolutamente convencido de

que, antes de 2018, existirá uma fusão”

Marchionne sempre trabalhou poesado, entre outras razões pela busca incessante de um parceiro para fundir com a FCA. Ironia das ironias, depois de enganar a General Motors, voltou a demonstrar interesse na empresa comandada por Mary Barra, com esta repetidamente negando qualquer acordo. Esteve quase conseguindo um acordo com a Opel em 2009 e, no ano passado, foram circularam rumores que a Great Wall, empresa chinesa, iria comprar a Jeep. Boato! Já este ano, veio à tona o rumor que a Hyundai estaria pronta para comprar a FCA e logo se percebeu que o boato da Great Wall foi uma forma de tentar pressionar a Hyundai a acelerar o processo de aquisição. Tudo desmoronou quando o gigante coreano negou estar interessado, por enquanto, na FCA.

O lado mais negro de Sergio Marchionne é descrito por alguns que de perto trabalharam com ele. Trabalhador incansável sete dias por semana, andava entre os Estados Unidos e Turim numa rotina semanal, mas segundo os seus detratores, era demasiado cruel e insensível com seus funcionários, e despedia executivos e colaboradores sem a menor cerimônia. Exigente, não perdoava e raramente esquecia alguma coisa que lhe fizessem.

Infelizmente, essa pessoa especial e competente, que não tinha medo de nenhum obstáculo, hoje está lutando pela vida, sendo as notícias pouco animadoras -apesar da “blindagem” que a família, a FCA e o Hospital Universitário de Zurique, onde Marchionne está internado desde a intervenção cirúrgica em junho- têm levantado. Por isso, AUTO&TÉCNICA elembra a trajetória lembra o trajeto do italo-canadense de sorriso fácil e posições firmes, que mereceu uma carta emocionada de John Elkann, neto de Gianni Agnelli e chefão da Exor, a holding da família que controla a FCA e a Ferrari, entre outros.

Nascido no dia 17 de junho de 1952 em Chieti, Itália, foi com apenas 13 anos para o Canadá com a sua família em busca de uma vida melhor. A sua dupla nacionalidade vem disso, tornando-o igualmente fluente em inglês e francês. Licenciou-se e tirou MBA na Universidade de Windsor (Canadá) em comercio internacional, tendo, igualmente, uma licenciatura em direito obtida na Osgoode Hall Law School of York University (Ontário, Canadá).

Entre 1983 e 1985, Marchionne trabalhou como especialista em impostos na Deloite&Touche, no Canadá, e a partir de 1985 até 1988 foi “controller” e, depois, diretor para o desenvolvimento do Grupo Lawson Mardon, de Toronto. Foi vice-presidente executivo da Glenex Industries durante dois anos, para em 1990 se tornar vice-presidente para as finanças e CFO da Acklands Ltd. Entre 1992 e 19904, foi o vice-presidente e CFO do Lawson Group, cuja aquisição por parte do Algroup em 1994, o levou para o posto de CEO em 1997. Já baseado em Zurique, onde mora, assumiu o cargo de CEO do Lonza Group, depois do “spin off” deste do Algroup, chegando a presidência em 2002. Nesse mesmo ano, tornou-se o CEO da SGS, em Genebra, tendo chegado a presidente da empresa.

Chega ao universo da Fiat em 2003, juntando-se ao conselho de administração como diretor independente. Sem qualquer experiência no complicado mundo do automóvel, a sua face de “workaholic” e a já estabelecida fama de gestor capaz de transformar empresas deficitárias quase na falência em geradoras de lucro, criou uma boa impressão entre os responsáveis do Grupo Fiat. E esta capacidade de dar vida para empresas em dificuldades era, exatamente, o que os italianos precisavam.

Em 2003, o império dos Agnelli, vítima de anos de má gestão, estava à beira do colapso. Os “tubarões” da área de finanças sentiram o desespero do Grupo e Roberto Colaninno foi dos primeiros a anunciar que desejava usar os seus recursos para resgatar a Fiat, tornando-se, pelo caminho, o chefão. Porém, num arroubo de orgulho, o conselho de administração da Fiat recusou a proposta, detonando um terramoto no preço das ações da marcaitaliana, que caíram para valores mínimos históricos. Na época, boatos diziam que o remédio para estancar a sangria financeira seria vender a parte do negócio de automóveis e concentrar esforços nas áreas rentáveis, como a New Holland (tratores) e os seguros.

“Quando vejo um Range Rover na rua,

o meu sangue ferve! Nós devíamos ser

capazes de fazer uma coisa como aquela.

E vamos fazer!”

Sergio Marchionne assumiu a liderança da Fiat demasiado cedo, mas a cadeia de acontecimentos obrigou a isso. Primeiro foi a morte do presidente do grupo,  Umberto Agnelli, de câncer, aos 69 anos. Depois, foi a indicação do conselho de administração de promover o presidente da Ferrari, Luca di Montezemolo para o lugar de Agnelli, o que deixou o chefão do grupo na época, Giuseppe Morchio, muito irritado, pois tinha demonstrado publicamente que esperava ser nomeado presidente. Não foi e por isso apresentou a sua demissão.

E aqui é preciso abrir parênteses para explicar que a sucessão de Marchionne passou pelo mesmo problema. Alfredo Altavilla, o chefão da Fiat Chrysler Automobiles para a Europa, Oriente Médio e África (EMEA), esperava agora ser escolhido para CEO do grupo, e ao ver Mike Manley passar à sua frente, se demitiu de seu cargo, furioso com o conselho de administração. 

Com a saída de Morchio, o “board” convenceu Marchionne a assumir o lugar de CEO. Na época, o executivo italiano afirmou que “como parte da minha maneira de ser, gosto de arrumar as coisas e de ser contundente. A Fiat precisa de ser consertada, e já!”

Bom lembrar que, naqueles tempos, o carro mais moderno da Fat era o Panda (que tinha sido lançado em 2003) com o Seicento e o Punto não recebendo alterações desde o final dos anos 1990! O domínio da marca escorria entre os dedos como areia fina.

Após um ano como CEO do Grupo Fiat, Marchionne começou a dar mostras da sua sagacidade e do talento para transformar ferrugem em ouro. No ano 2000, a General Motors tinha adquirido 20% do capital da Fiat por US$ 2,4 bilhões, valor que se reduziu para 10% disso quando o gigante americano se recusou a entrar no plano de recapitalização da casa italiana.

O acordo entre a GM e a Fiat tinha uma clausula que permitia aos italianos forçar a compra da sua divisão de automóveis por parte dos americanos entre 2004 e 2009. Isto, caso a Fiat decidisse vender a “jóia da coroa” dos Agnelli. Claro que a poderosa família proprietária do Grupo Fiat não queria vender o negócio de automóveis, forjado a muito trabalho desde o início do século, e deixou isso bem claro ao longo das tentativas da GM em concretizar o negócio.

Porém, Marchionne não estava preocupado com os problemas da família Agnelli, mas sim em devolver os lucros ao Grupo Fiat, e por isso foi, publicamente, bradando para quem quisesse ouvir que iria pedir à GM para manter a promessa de compra ou acabaria tudo em tribunal.

Marchionne já tinha percebido que os responsáveis máximos da General Motors estavam muito preocupados com os seus próprios problemas. Estava começando a grave crise financeira dos gigantes de Detroit, e diante da promessa de compra, cara, de uma empresa que continuava sangrando descontroladamente, os responsáveis da GM tentaram enfrentar a pressão. Argumentaram que a Fiat tinha denunciado o acordo devido ao aumento de capital e à venda de algumas empresas. Marchionne tinha colocado a GM onde queria!

“A mediocridade não

merece a viagem!”

Após meses e meses de duras negociações, ameaças com tribunais e declarações mais ou menos infelizes de ambos os lados, em 2005 a General Motors aceitou pagar US$ 2 bilhões. E não para comprar a Fiat, e sim para não adquirir a marca italiana e assim livrar-se de um contrato que os americanos entendiam ser ruinoso. Pagou para não comprar a Fiat e, ainda por cima, dissolveu a parceria que durava há cinco anos.

Negócio da China. Sarcástico e celebrando sua jogada de mestre, Sergio Marchionne disparou que “com US$ 2 bilhões vamos fazer muitos carros pequenos…”. Essa é a estranha história de como a General Motors financiou a Fiat.

Com esta estrondosa vitória no currículo, que muito feliz deixou a família Agnelli, Sergio Marchionne passou a mostrar uma outra face. Em 2005 despediu o chefão da Fiat Auto, Herbert Demel, e não demorou para ocupar essa cadeira. A coisa não foi pacífica. Marchione apressou-se a dizer que “tudo está sendo feito para que possamos acelerar a recuperação da divisão de automóveis”, fazendo questão de cutucar Demel ao recordar que “a Fiat Auto foi a única divisão do Grupo Fiat que perdeu dinheiro neste ano de 2004”. Estas atitudes de Marchionne causaram estranheza e logo alguns analistas afirmaram que era impossível que o italiano fosse capaz de gerir o Grupo Fiat e a Fiat Auto, pois a tarefa seria imensa e a sua experiência no universo automotivo, muito curta.

“Os custos dos fabricantes são excessivos

diante do que considero ser suportável

por uma indústria madura”

Com todo o poder nas mãos, Sergio Marchionne respondeu aos seus detratores com um mega plano de recuperação, lançado em 2005 e que tinha a duração de cinco anos. Diante de uma plateia repleta de representantes do capital do Grupo Fiat e de jornalistas, Marchionne anunciou o lançamento de 20 novos automóveis entre 2005 e 2008, com a promessa de investir US$ 11,8 bilhões para que as marcas da Fiat se mantivessem competitivas e, sobretudo, rentáveis.

Haveriam novos carros para a Lancia (como uma versão do Suzuki SX4 que acabou sendo desviada para a Fiat, nascendo o Sedici) e o renascimento do 500 em 2007. Para evitar ser mais atacado internamente, anunciou que não fecharia nenhuma fábrica na Itália. Mas o 500 seria produzido na Polônia. E o sucesso do 500 e seus derivados, que permanece ainda hoje, acabou por ser um golpe genial.

Resolvida a questão do investimento da Fiat, Sergio Marchionne deu asas ao seu instinto predador e olhou para o outro lado do oceano Atlantico, para os Estados Unidos. A curta aliança vivida entre a Daimler e a Chrysler, deixou os americanos em sérias dificuldades financeiras. A situação era tão grave que a marca de Detroit, outrora uma das “big three” de Detroit, beirava a extinção, pois as ondas de choque da crise financeira de 2008 continuavam a impactar forte no comércio e indústria mundiais. A General Motors teve de pedir ajuda financeira a Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, e o valor era tão alto e as complicações jurídicas tão grandes que, rezando para que a Ford também não pedisse ajuda (o que acabou não acontecendo), Obama tomou a decisão de deixar morrer a Chrysler. Seria mais barato o impacto social que o resgate por parte do tesouro norte americano.

Salivando pela oportunidade de fortalecer a sua reputação de “Midas”, salvador de empresas perdidas, Marchionne acreditava que podia salvar a Chrysler, e viu a oportunidade de construir um Grupo grande, forte e poderoso, presente nos dois lados do Atlântico. Assim a Fiat adquiriu 20% do capital da Chrysler que era da Cerebus Capital Management em abril de 2009, logo depois do gigante americano ter entregue o processo de falência e sem er um centavo em caixa. Manteve apenas a promessa de tentar manter as marcas vivas. A chegada do dinheiro da Fiat foi o suficiente para que não fossem desligadas as máquinas, existindo, logo, transferência de tecnologia que acabou por permitir à Chrysler lançar modelos novos com plataformas Fiat e motores italianos. Acabou por ser uma situação boa para os dois lados: a Chrysler recebia o dinheiro que necessitava, desesperadamente, bem como a tecnologia já desenvolvida para renovar a sua linha. Por sua vez, a Fiat ganhava escala e um mercado enorme como o americano, acreditava que rapidamente conseguiria regressar aos lucros. Mas mais importante, tinha acesso ao mercado americano sem restrições. Há décadas não se vendiam Fiat nos Estados Unidos. 

Para afastar comentários contrários a este acordo, e sobre a perda da independência da Chrysler, Marchionne explicou na época que “independência neste negócio não é algo sustentável. Precisamos de, pelo menos, 5,5 milhões a 6 milhões de carros por ano para ter alguma possibilidade de ganhar dinheiro”. Na  sequência, reergueu a marca Jeep, de maneira inacreditável, e ressuscitou a Alfa Romeo, entre outros feitos.

Claro que a Fiat avançou rápido na compra de mais capital da Chrysler e, em 2012, foi anunciada que a participação chegava aos 58,5%. Dois anos depois, adquiriu o resto do capital junto ao sindicato dos trabalhadores (United Auto Workers) e não demorou a fundir a Fiat com a Chrysler, formando em 2014 a Fiat Chrysler Automobiles (FCA). E porque não queria que o orgulho da empresa fosse contaminado, anunciou a transformação da Ferrari, em 2016, numa empresa independente. Mas o controle da Ferrari não saiu da mão de Marchione, que era o chefão da maca, estando o capital apenas 10% disperso na bolsa de valores.

Uma das últimas aparições: reunião anual da FCA, CNH e Ferrari, em abril deste ano, com Sergio Marchionne ao lado de John Elkann

 

“Cito Enzo Ferrari: vendemos sempre

uma Ferrari a menos que o mercado exige

a cada ano, e essa política nunca será alterada”

A última catada da gestão de Sergio Marchionne foi a apresentação, em junho deste ano, do novo plano de negócios 2018-2020. Apareceu diante de uma enorme plateia de jornalista, em Balocco, deixando claro no seu discurso que o foco deste plano está nas marcas Jeep, Maserati e Alfa Romeo.

Anunciou uma ofensiva elétrica e planos para novas tecnologias, em particular um serviço de compras acionado de dentro do veículo. Aproveitou a ocasião para anunciar que o grupo FCA eliminou a sua dívida industrial e antecipou um enorme aumento de vendas da Jeep, que irá ajudar o grupo a triplicar os seus lucros em 2022.

O fim da dívida industrial deixou os observadores boquiabertos, pois era algo de verdadeiramente monstruoso e que todos julgavam impossível de ser resolvida. Mais um marco na sua carreira de gestor, cujas últimas palavras públicas, significativamente, ao lado de John Elkann, o neto de Gianni Agnelli, presidente da Exor e da FCA, foram “emergir do pântano das dívidas representa uma mudança fundamental na imagem da empresa!”

Dizem que o que fica é a última lembrança. Esta é a última imagem de um gênio da história do automóvel chamado Sergio Marchionne.


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