A ANFAVEA quer ver você a bordo de carroças. De novo…
O Brasil é, antes de tudo, vítima de todo tipo de extrativismo. Começou com o pau-brasil logo depois do descobrimento, passou pela cana de açúcar, café, ouro, pedras preciosas e minérios, e por incrível que pareça, sobreviveu. Empobrecido, mas sobreviveu. Mas há uma forma de extrativismo mais ou menos silenciosa, que começou de maneira tímida em maio de 1956 com a criação da Associação Brasileira Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, a ANFAVEA, orientada pelo “tudo para nós e quase nada para o consumidor”.
por Ricardo Caruso
Vez por outra essa associação toma posições que parecem subestimar o outro lado do balcão, onde estão justamente os consumidores, que é a peça principal para esse segmento funcionar. Antes, ela tinha o poder de chantagear governos seguidos em busca de benesses para seu setor,com constantes e veladas ameaças de desemprego. Ou se fazia o que ela queria, ou milhares de trabalhadores iam para as ruas. Consta que na sua conta está, por exemplo, até o desmanche do sistema ferroviário brasileiro, para ajudar duas ou três marcas a venderem seus caminhões, ocupando assim o mercado de transporte que era feito sobre trilhos.
Quem tem boa memória, vai lembrar que esse segmento começou a ser sacudido em 1979, com a greve organizada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Até então, as fabricantes reinavam soberanas, apoiavam a ditadura, proporcionavam espaços para tortura, davam guarida a nazistas foragidos, pagavam salários muito baixos etc. estavam na contra-mão do bom senso. Para o consumidor, ofereciam carros antiquados, de pouca ou nenhuma tecnologia, inseguros e beberrões. Esse cenário deu uma guinada de 180 graus quando o então presidente Fernando Collor “decretou” que os carros nacionais eram “carroças” e reabriu as importações no início dos anos 1990. Como assim “reabriu”? Simples, estavam proibidas desde 1976, reservando dessa forma o mercado para as empresas que atuavam aqui. Zona de conforto garantida de 1976 a 1990, restava ao brasileiro se contentar com as “carroças” oferecidas no mercado, com algumas exceções.
Do dia para a noite o brasileiro se maravilhou com novidades como BMW, Mercedes-Benz, Volvo, Lamborghini,Mazda, Honda, Citroën e até Lada… Os impostos de importação oscilaram de 80% até 20%, e houve um momento em que entre os carros mais vendidos do Brasil estava o Fiat Tipo italiano. Era um mercado forte, que passou a incomodar a ANFAVEA. Em março de 1995, da noite para o dia o imposto subiu de 32 para 70%, ao mesmo tempo em que o dólar disparou e 60% dos 25.000 trabalhadores do setor foram dispensados. Foi a deixa para as marcas filiadas à ANFAVEA subirem os preços – e suas margens de lucro- e dessem uma freada nos investimentos. Bem depois, nos anos 2000, teve a chegada das marcas chinesas, que também conheceram a fúria de quem não gosta de concorrência.
Assim, de tempos em tempos a ANFAVEA veio fazendo suas manobras, sem jamais pensar no consumidor. Nem é seu papel, mas respeito é bom e todos gostam. Agora os fabricantes locais de veículos pressionam o governo brasileiro para que passe a taxar os carros elétricos importados, como uma espécie de defesa antecipada contra os chineses eletrificados que estão invadindo o Brasil e apavorando as montadoras locais com seus preços para lá de competitivos. Ficou claro como os carros nacionais são inflados nos preços.
Essa batalha contra os chineses tem nuances de cinismo puro, com frases estudadas e combinadas, como “carro elétrico é bobagem no Brasil, já temos o etanol…”, “se todo mundo tiver carro elétrico, não haverá eletricidade suficiente para carregá-los”, “não há infraestrutura para carros elétricos”, “o que fazer com as baterias no fim do seu ciclo de vida?” e assim vai. O mundo todo pensa diferente, e o Brasil quer ser -via ANFAVEA- o avesso do avesso.
O inacreditável é que as montadoras pedem ao governo para pagar impostos nos seus elétricos importados, algo que nunca aconteceu e éum comportamento impensável no choramingoso setor. Para a associação “a penetração dos carros chineses no mercado brasileiro é crescente desde que caiu, em 2015, a proteção do imposto de importação de 35%, reduzido a zero para carros elétricos e a 2% ou 4% para híbridos”. É assim em todo mundo e a isenção de imposto de maneira clamorosa deu certo, já que a ideia era exatamente essa: impulsionar e estimular o segmento. Essa isenção não beneficia só os chineses, e sim todos os carros elétricos trazidos para cá, até mesmo pelas marcas já instaladas aqui, como Fiat, Volkswagen, Honda, Toyota e GM, entre outras. Os chineses não são exclusivamente os beneficiados e já estão montando fabricas no Brasil. Esta nascendo uma nova era na indústria automotiva mundial, e o Brasil não pode ficar de fora.
É inegável que a isenção foi fantástica, pois a participação de carros elétricos e eletrificados vem subindo mes a mes no Brasil, dando a chance do consumidor brasileiro ter acesso a tecnologias de ponta. Goste ou não, esse é o presente e o futuro. Menos para a ANFAVEA. Por enquanto, a participação dos chineses elétricos é pequena, e está engatinhando; no ano passado, por exemplo, cresceu quase 200%, mas ficou em apenas 8.500 unidades. Vai crescer a cada mes, e ocupar o espaço que já ocupa na Europa e Estados Unidos, entre outros mercados importantes. O carrio mais vendido da Europa no primeiro semestre é um elétrico (Tesla).
Há uma máxima que diz que “os japoneses levaram 30 anos para aprender a fabricar carros, os sul-coreanos precisaram de 20 anos e os chineses em 10 anos estão dando aula”. Então, qual a preocupação da ANFAVEA em se proteger dos inevitáveis chineses? A verdade é que as marcas tradicionais não demonstram o menor interesse em produzir carros elétricos no Brasil. Para isso, precisariam parar, dar um corte nas suas produções, repensar a vida e investir muito, mas muito dinheiro. Carros com motores a combustão deveriam estar faz tempo em museus, mas vão tentar empurrá-los goela abaixo dos brasileiros. As montadoras que aqui operam tem pesadelos só de pensar no quanto investir para produzir carros elétricos no Brasil, mesmo sem considera que são muito lucrativos. Como os chineses já anunciaram que vão produzir aqui, via ANFAVEA a ideia tentar atrapalhar e postergar ao máximo. Mas o caminho da eletrificação é inevitável e a chantagem do desemprego não deverá funcionar dessa vez; querem apenas inibir a salutar concorrência.
Por isso, para a ANFAVEA, se você voltar a andar nas “carroças” pré-Collor, ótimo. Então, fica o recado para a associação: deixe o brasileiro ser feliz.